Texto publicado originalmente em 28 de fevereiro de 2020 e editado em 29 de novembro de 2023
Os problemas da ocupação das várzeas dos rios e o crescimento desordenado de São Paulo contribuíram para que a cidade tivesse enchentes históricas. A maior delas foram as de 1929, sob a gestão do então governador da cidade (antiga denominação de prefeito) José Pires do Rio.
Na internet é possível encontrar diversos registros com textos praticamente iguais sobre o acontecimento. Deixarei alguns links no final para que vocês possam conferir o que já foi publicado sobre o tema. Entretanto, investigando acervos e juntando informações, encontrei detalhes inéditos do desastre. Vamos a eles.
O primeiro registro fica por conta do jornal Correio Paulistano do dia 22 de janeiro de 1929. A chuva foi tão forte que ocupou todo noticiário, com vários momentos de destaque.
O primeiro fica por conta da linha fina da matéria: “a zona baixa da capital inundada pelo transbordamento dos rios Tietê e Tamanduatehy”. Ou seja, o problema que acometeu a cidade em 2019, quando muitas pessoas morreram e, agora no começo de 2020, é quase centenário na cidade.
Outro ponto interessante, é a segunda chamada: “Algumas ocorrências tristes – A Hospedaria dos Immigrantes abrigando os refugiados da zona inundada”. E esse equipamento público contou com a ajuda de voluntários para ajudar as pessoas que perderam tudo, como podemos ver nesse outro trecho: “por sua vez, os sócios dos clubs de regatas Tieté, Palmeiras, Esperia e Athletica, estiveram auxiliando os socorros, colaborando com a iniciativa oficial”.
Segundo o relato do jornal, a Hospedaria recebeu 22 pessoas e, o diretor da época, Marcello Piza, acolheu a todos e proporcionou todo o conforto possível.
Outros bairros
A região do Canindé e do Pari também foram atingidas. Segundo o jornal: “Amanheceram hontem em grande parte, innundados os bairros ribeirinhos do Canindé e do Pary. Toda a parte baixa deste último bairro, desde os armazéns da inglesa para o Rio Tietê foi tomado pelas águas. As grandes baixadas do Canindé desaparecem sob a agua avermelhada, offerecendo aspectos de toda natureza”.
Outras regiões, como a Vila Maria, Casa Verde, Barra Funda, Bom Retiro e, até mesmo Santo Amaro, tiveram problemas com a enchente. Entre os serviços públicos que trabalharam para ajudar a população, estavam: bombeiros e policiais (que foram escalados para ajudar nos resgates).
O bairro do Ipiranga foi palco do maior desastre. Transcrevo o trecho do jornal: “Na Rua Cipriano Barata, registrou-se uma ocorrência mais impressionante das destes dais angustiosos. Um operário residente no prédio nº 07 daquella rua, em companhia de um amigo ao atravessar o canal do Ypiranga , cahiu nas águas, tendo perecido afogado! O companheiro salvou-se”.
A cidade, como é possível observar, se tornou um caos. Um garoto foi arrastado pela água e precisou ser internado na Santa Casa. Outras forças públicas tiveram que ajudar nos resgates e amparo aos que perderam tudo e quase morreram afogados graças às enchentes. Mas a cidade ainda não estaria a salvo. O mês de fevereiro registraria novas enchentes que entrariam para a história.
As chuvas de fevereiro
Entre os dias 18 e 20 de fevereiro, novos temporais castigaram a cidade. E foram ainda mais fortes, pelo que podemos analisar dos jornais da época.
Novamente a Hospedaria dos Imigrantes foi palco da recepção das pessoas desamparadas pelas enchentes, mas desta vez, os jornais davam conta de que “quasi completa a lotação do importante edifício”.
Segundo o site São Paulo para curiosos, o Rio Tietê chegou a 3,45 metros acima do nível normal. Casa Verde, Canindé, Ponte Pequena, Barra Funda, Lapa, Villa Maria e Vila Anastácio foram alguns dos bairros mais devastados pelo temporal. Como boa parte dos moradores já havia se retirado do local (foram centenas de famílias abandonando suas residências), não havia, pelo menos até aquela data, registro de mortes.
Os dias seguintes foram absolutamente caóticos. Na Freguesia do Ó e no Bairro do Limão, os moradores precisaram de barcos oferecidos pela Prefeitura para serem transportados até suas casas – algumas delas estavam quase que completamente submersas.
Mais registros
Outros jornais também destacaram os problemas causados pelas enchentes, como foi o caso do Estadão. O curioso é que o periódico chega a mencionar grandes enchentes no ano de 1922, mas não encontramos (até agora) bons registros do ocorrido.
Dentro da matéria, alguns trechos merecem destaque. Transcrevo algumas partes abaixo, no português da época. O material completo pode ser acessado nos links de referência que separei ao final do artigo.
“Agora, com as chuvas torrenciaes de ante-hontem que encheram o Tamanduatehy, são os bairros de Villa Independencia e Villa Carioca, Ipiranga, Parqueda Mooca, Pary e Canindé os que estão sofrendo com a enchente. Mas não é só isto. Se até domingo não havia ainda victimas a lamentar, já o mesmo não acontece. Na polícia, registraram-se casos de asphyxia, com o consequente desaparecimento de victimas ainda não encontradas.”.
…
(Os repórteres foram in loco constatar as áreas alagadas e o trecho mais impressionante é o que está abaixo)
“Neste ponto, tomamos um barco e nos encontramos num “lago”, antiga Villa Carioca, onde no meio, havia cazinhas quasi cobertas de água, cocheiras já quase desaparecidas e trastes boiando. Uma casa tinha ficado sem a frente que, dando para a corrente, fôra derrubada pela força das primeiras águas. Felizmente, nella não havia ainda moradores. Os locatários tinham mandado laval-a no sabbado para se mudarem segunda-feira. Isto é, hontem…
No meio daquelle lençói liquido, surgiram como querendo fazer ironia, taboletas em que se liam dizeres assim: “Vende-se este terreno…”
Desembarcamos e rumamos para a Rua dos Patriotas, onde a agua passava cerca de 80 centimetros por cima da ponte, impedindo o transito de bondes, caminhoes e automoveis. Uma carroça cobrava dez tostões de cada passageiro que tinha necessidade de alcançar a estação do Ipiranga. As officinas e o antigo restaurante da “General Motors” estavam inundados. Na Avenida Presidente Wilson, corria outro rio…”.
Lembranças do desastre
Uma das lembranças dessa tragédia fica por conta de uma pequena placa de bronze situada na calçada em frente ao número 56 da Rua Porto Seguro, no bairro da Ponte Pequena.
A inscrição “Nível da enchente de 1929” informa sobre sua função: demarcar o ponto atingido pelas águas do Tietê naquele ano.
Esse pequeno marco, quase imperceptível em meio à agitação da cidade, guarda um pedaço importante da história das enchentes e da urbanização de São Paulo. (Abaixo, um registro histórico fornecido pela prefeitura de São Paulo)
Projetos de canalização dos rios e de drenagem de pântanos, elaborados por engenheiros sanitaristas no final do século 19, tinham o objetivo sanear a cidade e livrá-la das epidemias de febre amarela, febre tifóide, peste e varíola.
Entre o final do século 19 e o começo do 20, a cidade cresceu vertiginosamente e a industrialização exigia a geração de energia elétrica. Um sofisticado projeto de canalização dos rios paulistanos foi, então, posto em prática, mas a intervenção mais severa foi aplicada sobre o Rio Pinheiros.
A Light & Power, empresa de capital canadense responsável pela formação da represa do Guarapiranga, em 1907, obteve a concessão do Governo Federal para retificar, canalizar e inverter o curso do Rio Pinheiros em 1927.
O controle da bacia hidrográfica do Alto Tietê, formada por inúmeros rios paulistanos, era justificado à época pela necessidade de intensificar a produção de energia elétrica pelo sistema de represas Guarapiranga e Billings, que abasteciam a Usina de Cubatão, instalada no sopé da Serra do Mar.
O acordo entre a Light e o Governo também previa que, em caso de cheias, os terrenos atingidos seriam reconhecidos como propriedade da empresa canadense, que também pretendia diversificar seus negócios e explorar o ramo imobiliário.
Dois anos depois do acordo, na época das chuvas de verão de 1929, uma enchente de grandes proporções atingiu a cidade. As águas do Tietê não fluíram suficientemente pelo Pinheiros.
Dizia-se a que Light controlara a vazão das barragens existentes, escolhendo, assim, as áreas inundadas que passariam a ser propriedade sua. Para demarcar os terrenos atingidos, a Light providenciou a instalação de pequenas placas, como a que existe até hoje na Rua Porto Seguro.
Por seu valor histórico, esse pequeno marco integra o Inventário de Obras de Arte em Logradouros Públicos da Cidade de São Paulo, mantido pelo Departamento do Patrimônio Histórico e disponível à consulta em sua página na internet.
Referências:
http://memoria.bn.br/DocReader/090972_07/34041
http://spcuriosos.uol.com.br/historia/a-pior-enchente-da-historia-de-sao-paulo/
https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19290122-18141-nac-0010-999-10-not
Nesta época meu pai morava no Pari. Na rua Thiers. A água chegava sempre até o primeiro degrau.
Em 1962/1963 aproximadamente eu também presenciei uma inundação dessas. Desciamos a Rua São Caetano com água pelo joelho. Como era criança minha mãe e meu pai me carregavam no colo. Lembro até hoje desse dia. Mas, nossa casa foi preservada. A água continuava a chegar só até o primeiro degrau
Nos anos 60, me lembro que na calçada da Rua Gago Coutinho (lado ímpar) na Lapa havia uma placa como essa – “Nível da enchente de 1929”. Infelizmente ela não se encontra mais lá já há algum tempo. Uma pena!