Quando falamos em abastecimento de água, ainda mais em uma metrópole como São Paulo, a primeira coisa que vem à cabeça são as megaestruturas de represas, além de uma boa água tratada correndo pelos canos e caixas d’água de toda cidade. Mas nem sempre foi assim, ainda mais em São Paulo, onde toda nossa infraestrutura foi desenvolvida “por necessidade” e não por planejamento prévio. No final do século XIX ainda dependíamos de chafarizes e fontes que, atualmente, são sinônimos de embelezamento. Esse sistema, de chafarizes e fontes, são o tema do resgate de hoje e, grande parte do texto a seguir, foi encontrado no acervo da Assembleia Legislativa de São Paulo.
O abastecimento oficial de São Paulo começou a ser idealizado e montado a partir do século XVIII, com as técnicas da época, com canaletas cobertas e que, no fim de tudo, seguiam apenas a lei da gravidade. A filtragem da água era feita da maneira mais antiga possível: com pedras depositadas no fundo das canaletas. Vale, aqui, um pequeno registro histórico. O sistema de abastecimento de água da cidade imperial teve duas origens: a primeira e mais antiga oriunda do Convento de São Francisco, onde os frades utilizaram o transporte de água feito por adução, ou seja, conduzir a água na rede de distribuição precária que havia. Essa água era proveniente do córrego do Anhangabaú e, inicialmente, era destinada ao uso privado, sendo posteriormente adotada para o uso público.
A segunda e mais relevante origem foi através de dois tanques de água formados na nascente do Anhangabaú, que ficavam no antigo morro do Caaguçu, atual bairro do Paraíso. Os tanques Municipal e Santa Teresa ficavam, respectivamente, na altura das atuais ruas João Julião e Santa Madalena. Utilizados até o limite, não tiveram condições de acompanhar a evolução populacional da cidade.
Essas estruturas eram as responsáveis por abastecer vários chafarizes que foram construídos pela cidade, como os do Largo da Misericórdia, do Pelourinho (atual Largo 7 de dezembro), de São Gonçalo (atual Praça João Mendes), de São Francisco e de São Bento. Havia outros tanques, como o Arouche e o Zunega (atual Largo do Paissandu). O do Reúno (também chamado de Tanque do Bexiga) situava-se na altura do Viaduto Major Quedinho e alimentava os chafarizes da Luz e do Piques, localizados no atual Largo da Memória. Esses tanques possuíam a importante função de servir às tropas de carga que chegavam à capital, além de bicas, como a do Acu (próxima à atual Praça do Correio), a do Gaio (localizada na atual Rua Tabatinguera), a de Santa Luzia (na rua de mesmo nome) e a dos Ingleses (na atual Rua Américo de Campos).
Estima-se que este conjunto fornecia à população cerca de 336 mil litros e nos tempos de seca reduzia-se seu volume a pouco mais da metade, o que obrigava a população a valer-se das águas dos rios Tamanduateí e do córrego Lavapés. Entre a documentação preservada na Divisão de Acervo Histórico da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo encontra-se um relatório do primeiro tenente do Imperial Corpo de Engenheiros, José Jacques da Costa Ourique, então diretor do Gabinete Topográfico da Província, criado pela Lei nº 10, de 24 de março de 1835, que funcionava em uma das salas do antigo Palácio do Governo.
Neste texto de dezembro de 1843, dirigido ao presidente da Província de São Paulo, Manoel Felisardo de Sousa e Mello, intitulado “Breve notícia sobre o estado das fontes que contornam a capital”, Ourique também indicava um plano de melhora e racionalização do uso das águas provenientes dos tanques Municipal e de Santa Teresa. Mas, sem dúvida, o mais interessante do documento é a descrição do estado do abastecimento de água da Imperial Cidade de São Paulo. Confiram um pequeno trecho do relato:
“Antigo encanamento da Câmara Municipal”
Pelo caminho da rua da Forca e Pólvora (atuais ruas da Liberdade e Vergueiro) se encontra a confluência de todos os encanamentos que vêm ter a São Francisco, Santa Theresa, Quartel e Misericórdia e do particular que, tomando águas na lagoa hoje de João Sertório, se despejam na chácara do falecido Alves Lourena. A excetuarmos este último, uma só obra, ajudada talvez pela Câmara Municipal e Santa Theresa, podia conduzir todas as águas das vertentes desse lado para as necessidades públicas e particulares da Cidade. Em outro tempo a Câmara Municipal possuía sem contestação de propriedade um lago, que se acha acima de todas as vertentes, e que hoje se considera como a primeira, e mais abundante, e que alimenta as outras; porque sobranceira como está, se conserva pelos anos mais calmosos com água, que dão corrente e alimentam depois ainda de muito filtradas e perdidas, uma pequena cascata, que entre as matas corre um pouco mais inferiormente; e deixando por um momento esta corrente constante mostrarei a V. Exa. qual o estado atual da lagoa superior a todas vertentes.
A Câmara Municipal de outros tempos curava com muita atenção do asseio desta matriz superior, e só com ela tinha com abundância água na Cidade para servidão pública; mas fosse porque lhe achassem a propriedade do Tanque de São Francisco, ou por uma só obra onde gastavam dois proprietários: a Câmara ficou com propriedade no primeiro tanque inferior, aquele que possuía. Daqui vem que a Câmara Municipal, que mandava conduzir o encanamento por cima da montanha contígua no lugar, que hoje é a estrada e cujos restos ainda são vistos; muito bem aconselhada desprezou um ramo de encanamento para formar o que se principiou no Tanque dos frades Franciscanos. Resultou daqui que confiando a Câmara o resto das leis naturais desviou seus cuidados da conservação do asseio da lagoa superior, esperou a filtração em baixo para as águas, que já estavam no tanque também perene de São Francisco.
Assim, as vertentes superiores ficaram e ainda estão imundas, tornando-se água de bebidas para os inúmeros animais, que se conservam nesse pasto; e entrando estes brutalmente pelo lago, fazem aí tudo de que têm precisão, vindo logo em corrente sobre o tanque Franciscano; e as águas, apesar do filtro de mais de 40 braças, hão de necessariamente trazer em dissolução todos os sais que abundam nas crinas animais, que só podem ser decompostas e precipitadas por meio de reagentes químicos, e não por um filtro qualquer; que perfeitamente V. Exa o sabe só pode obstar a passagem de partículas aderentes, e nunca as mais tênues, ou a totalidade.
Esta lagoa é contígua a duas montanhas laterais da forma como abreviadamente aqui tracei. Na lagoa superior, que comunica com o tanque dos Frades (Nº 2) por meio de um alagadiço, no meio do qual corre com abundância, e alimenta todas as fontes inferiores, até se despejar em águas superabundantes pelo açude do tanque do J. Sertório (Nº 4), depois de alimentar o de Sta. Theresa (Nº 3). Reuni estas águas, que formam tantos tanques de propriedades particulares e pública, não são mais que o repuxo de uma fonte total subterrânea, pelo que se produzem diferentes poços artesianos, cada um de propriedade de um senhor; e tais que se proibindo a filtração superior, os debaixo imediatamente mudarão de nível; sendo só sustentados pelas águas da montanha lateral; […].
Tanque de S. Francisco – Uma singela telha no Campo dos Franciscanos comunicava ao encanamento que tinham para seu convento, e nunca faltou água, mas procurando a Câmara Municipal mudar o encanamento da Cidade, que estava a expensas suas, partindo do Tanque Franciscano, tudo mudou, e as águas pararam no Inverno tempo da calmosa dos dias enxutos… Nunca faltou água corrente no tanque, e em 1842, no coração do Inverno (em fins de Julho, e princípios de Agosto), corriam ainda duas sarjetas d’água, que se perdiam para o consumo público; uma alimentava o de Sta. Theresa, e a outra corria pelo encanamento que a Câmara principiou, e filtrava-se ou perdia-se mesmo no terreno bruto aquém dessa obra; assim no chafariz da Capital não se recolhia uma só gota.
Atualmente se não pode fazer cálculo algum sobre as necessidades do tempo enxuto e por isso só quem presenciou poderá avaliar neste ano ainda no tempo da Presidência do Sr. Coronel Joaquim José Luiz de Souza houve uma vistoria para se aproveitar a obra atual e represar-se o tanque. Feita esta obra as águas chegarão, como afirmei antes, ao nível, ou se conservarão, despejando-se sobre a Cidade; e V. Exa acaba de ver a diferença do volume d’água no tanque de S. Francisco, e no chafariz da Cidade… Lá corre a encher o telhão, e uma grande porção que se perde à direita pela obra provisória, e meramente de experiência, que se fez (um muro de terra solta para fazer subir o nível d’água como se conseguiu), mas logo depois a pouca distância apenas goteja no chafariz da Capital.
A Câmara principiou com obras no tanque, que foram embargadas por João Sertório, e a este respeito ainda corre-se a demanda de propriedade, não se podendo por isso tentar qualquer encanamento desse ponto, por que V. Exa. sabe, o primeiro trabalho é a preparação do fundo do tanque, a fim de se não filtrarem as águas. […]. Tanque de Sta. Theresa e João Sertório ” São ambos estes tanques hoje de propriedade particular. O primeiro pertence a Sta. Theresa por um uso de tempos remotos; é imediato ao de S. Francisco e alimentado por eles; enquanto ao de Sertório a propriedade é incerta porque também sobre este demanda com a Câmara; que a posse deste, deixa Sta. Theresa gozar do segundo, e quer se aprovar do primeiro (Nº 2) ou de S. Francisco.
Sobre este tanque de Sertório não vale apenas da demanda a questão que se tenta. No tempo do Inverno é baixo o nível, no das águas tem grandes enxurradas, que trazem as terras de aluvião e as misturas: assim pouco podem dar; esta conseqüência vi com certeza, depois que formei o primeiro plano; enquanto ao de Sta. Theresa por uma máquina simples em caso de extrema necessidade, o que não se deve esperar à vista do estado perene das águas nos tempos enxutos; pode lançá-las para o encanamento: estas também são limpas, e podem ser consumidas, deixando-se um pouco repousar para beber-se; isto só pelo mau estado do leito e margens do tanque. Estas são as águas a obter-se encima da Cidade podendo-se consertar algumas fontes nos lugares baixos e impossíveis de ver acima.
Chafariz do Bexiga ” Este alimentado, parece-me, que por uma nascente particular está há muito desprezado; e nunca o vi correr, pertence particularmente à Câmara Municipal, que talvez por falta de fundos não tem podido mandar consertá-lo. A água é muito boa, e fica aquém do Tanque Reúno, metendo-se uma montanha de permeio, por baixo deste chafariz corre um riacho, que forma-se das águas vindas da filtração do açude do Tanque de Sertório, e outras vertentes; une-se lago com outro, que vem pela baixada do Tanque Reúno, e forma o rio Inhangabahu, que se vai despejar no Tamanduá-tehi. Do Tanque Reúno, que fica por trás da Consolação, nascem 3 canais. O de cima, ou primeiro, vai por Sta. Ephigênia ao Jardim Público [o atual Parque da Luz, DAH]; o segundo aos banhos do Piques, e o 3º, em terreno bruto, é o riacho de que falei.
As águas, que ora correm no muro do Piques, não vêm do Tanque, mas de uma vertente perto; esta obra pertence também à Câmara da Capital, e ainda há pouco pretendia aí fazer obra a fim de não perder a muralha que se acha ameaçada de desmoronamento. Todo o terreno do Bexiga e Piques é cheio de vertentes constantes, por isso desta parte da Cidade o Povo é quem menos sofre no tempo das secas; ainda esta montanha do Piques seguindo logo depois do primeiro vale da chácara do Sr. Joaquim José dos Santos e Silva até a [ilegível, DAH] do Açu, forma uma enorme, constante e muito boa vertente dividida na superfície em duas denominadas em geral o Tanque do Zunega. Acima destas está o encanamento que vem do Tanque Reúno para o Jardim donde se tirava água para o Hospital Militar por um encanamento praticado com esse fim; e hoje sem preencher seu fim.
As águas do Jardim são muito precárias pelos repetidos arrombamentos do Tanque feitos ou de propósito para haver água no braço, que se vai unir no Inhangabahu, ou por acaso; seja como for: na vistoria que ultimamente se fez com V. Exa., o tanque estava arrombado e o valo que conduz água ao Jardim em perfeita seca. […]. Logo depois se encontra noutro lado da montanha oposta a procurada fonte de Miguel Carlos [na atual Rua Florêncio de Abreu, DAH], aí precisa-se de um benefício pequeno a fim de se ter sempre limpa, e com abundância esta água, que é muito consumida pela Cidade.
Só resta tratar da Fonte dos Ingleses na descida do caminho de Santos. Muitos preferem esta à do Chafariz, mas em tempo de chuva as águas pluviais, que com grande pressão atravessam as câmaras de filtração, passam ou por terrenos salinos ou por entre raízes resinosas de certas árvores de maneira que deixam o líquido de mistura, e incapaz de consumir-se para beber-se; mas são eventualidades e por esta razão merece também um benefício relativo ao consumo, pequeno mas mesmo assim aumentando o volume pelo depósito. Do rio Ipiranga não se pode obter água porque todas suas agudas montanhas de vertentes estão opostas à Cidade deixando um vale de permeio, e por isso precisando de tubos curvos no plano vertical, ou de aquedutos; ambos os meios de enormes despesas para o lugar que poderá obter agora por um preço vinte vezes menor ao menos. No Convento de S. Francisco perto da falda da montanha, tem também muito boas vertentes que se aproveitam, mas todas baixas sem poderem vir à Cidade, sendo necessário a quem consome ir buscá-las no lugar.
No tempo das mais rigorosas secas se conta com as águas do Tamanduátehi; e estas sujas sempre pelas lavagens de inúmeras lavadeiras, além de toda matéria pútrida e miasmática da roupa dos Hospitais e Quartéis, têm causado por mais de uma vez peste na Cidade; os princípios mais óbvios de higiene são bastante para provar esta asserção, contam com estas águas não porque a fonte de S. Francisco esteja seca, mas por não haver encanamento que conduza as águas correntes. Tal é há muito tempo o mau estado das águas da Capital.”
A questão do precário abastecimento de água na Capital era objeto de pesadas críticas dos paulistanos, que se materializavam nas páginas de jornais e nas charges dos artistas. O assunto sempre preocupou os governantes paulistas. Em meados do século XIX já havia a convicção de que a forma satisfatória para solucionar o problema da falta de água era fazer sua derivação da Serra da Cantareira.
Desse modo, a Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo discutiu e aprovou a Lei nº 29, de 8 de abril de 1857, que autorizava a contratação da canalização das águas da Cantareira com Achiles Martin de Estadens, em tubos de ferro betumados, colocando 30 chafarizes em vários pontos da Capital. Tal iniciativa acabou não prosperando e, em 1866, a Assembléia aprovou nova lei com o mesmo objetivo, sem, no entanto, especificar o nome do empresário. Mas, em 1870, a Assembléia revogou a lei de 1866 e tratou novamente do tema. Desta vez, porém, deu ao assunto um tratamento mais amplo e atualizado. Além da canalização, determinava sua distribuição pelas ruas e praças da Capital, construindo os reservatórios indispensáveis segundo as necessidades e comodidades públicas, bem como a colocação de registros, fire-plugs, para o serviço de incêndios nas ruas por onde passarem os encanamentos. Também estabelecia o preço das ligações residenciais, dando um desconto aos “particulares que subscreverem penas d’água antes de concluídas as obras”.
Anos depois, em 1877, foi organizada a Companhia Cantareira de Águas e Esgotos e, em 1881, os moradores da Imperial Cidade de São Paulo começaram a ter água em suas casas, de maneira mais generosa, que era captada do Ribeirão Pedra Branca na serra da Cantareira.
Esta água chegava ao reservatório construído na região da Consolação “cuja pedra inaugural foi lançada em 27 de setembro de 1878 pelo Imperador Pedro II” e depois eram distribuídas às residências. A própria Assembleia Provincial recebeu a água canalizada da Cantareira em 1883.
Neste mesmo ano também foi entregue ao uso público o primeiro distrito de esgotos, que era o do bairro da Luz, atingindo 71 prédios. Como tais serviços tinham de ser pagos, houve certa resistência à sua adoção e, no início da década de 1890, vários chafarizes e bicas foram desativados como forma de obrigar os paulistanos a ter seus prédios ligados à rede distribuidora das águas da Cantareira, sob o controle do governo do Estado de São Paulo. Somente assim se aposentaram os tanques de São Francisco, Municipal e de Santa Teresa.
Referência: https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=259639