Do Rio de Janeiro a Nova York: a viagem “impossível” dos Ford T

Uma das roadtrips mais impressionantes (e esquecidas) foi feita a partir do Rio de Janeiro até Nova York por Francisco Lopes da Cruz, Leônidas Borges de Oliveira e Mário Fava. Esses três homens foram os responsáveis por uma viagem do Brasil aos Estados Unidos a bordo de dois Ford’s T em 1928.

Se essa viagem parece improvável agora, imaginemos o contexto, a coragem e as dificuldades desses três rapazes em fazer esse trajeto de 26 mil quilômetros. Eles fizeram, mas demoraram 10 anos para concluir o percurso.

Segundo relatos da época, toda essa demora foi por conta da média de quilômetros percorridos por dia: 7 e, além disso, não existiam muitas das pontes, estradas, viadutos e túneis que estamos acostumados a cruzar.

A situação, na verdade, era pior do que essa: parte dos terrenos por onde os Ford-T passaram eram abertas “a base de pá”, serra, picareta e, em alguns casos, dinamite.

Os jovens passaram por lugares “absurdos” como a Cordilheira dos Andes e pela selva amazônica, onde ficaram quatro meses perdidos. Sobre os rios? Os três faziam balsas, subiam e torciam para tudo dar certo.

Diante de todas essas informações, fica a pergunta: qual era o objetivo disso? Os três queriam traçar a rota para uma futura estrada que ligasse as três Américas. Por onde os três passavam, sempre havia uma busca deles por apoio das autoridades locais.

De olho nas promessas dos três e do desenvolvimento que essa estrada traria para suas cidades, não era incomum que recebessem abrigo, itens de necessidade básica, combustível e pneus. Os três consumiram, inclusive, 56 deles pelos dois carros ao longo da viagem, além de 15 mil litros de gasolina e 1.300 de óleo.

Os três atravessaram 15 países e sofreram dois acidentes consideráveis, os dois no Peru, quando rolaram abismo abaixo. Também passaram fome, frio e correram de animais selvagens.

Sobre os carros e a chegada aos EUA

O primeiro Ford T, com carroceria de automóvel, fabricado em 1919, foi doado no Rio de Janeiro pelo Jornal O Globo e recebeu o nome de Brasil. O segundo, modificado para uma carroceria de picape, de 1926, foi doado pelo Jornal do Comércio e foi batizado de São Paulo.

E a aventura foi enorme: eles ficaram quatro meses perdidos na selva da Colômbia e, inclusive, um dos veículos capotou.

No Peru, levaram quatro meses para atravessar os Andes e percorreram 450 km de deserto de gelo a 5 mil metros de altitude. Tiveram de entrar no Panamá com os carros desmontados por causa do pântano, e encontraram atletas brasileiros que seguiam para a Olimpíada de 1932, em Los Angeles.

Quando os dois carros chegaram à fronteira do México com os Estados Unidos, em 1936, a festa foi gigante.

Várias figuras importantes estavam por lá: o então Presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, em plena Casa Branca, e com Henry Ford, em pessoa, na matriz da fabricante, em Detroit. Um técnico da Ford, aliás, atestou a originalidade dos carros e de seus motores.

Segundo os registros do próprio fabricante, os dois Ford’s foram produzidos, respectivamente, em maio de 1919 e fevereiro de 1926 e ambos chegaram ao país através do porto de Nova York. Ao tomar conhecimento da aventura, que envolveu até um tipo de combustível paralelo, feito de cachaça de milho e gordura de lhama, Henry Ford tentou comprar os veículos, para exibi-los no museu da Ford.

Os brasileiros recusaram a oferta e, em 5 de maio de 1938, os dois carros e os três aventureiros embarcaram para o Brasil em um navio. Eles chegaram ao Rio de Janeiro em 25 de maio e foram recebidos pelo presidente Getúlio Vargas, a quem foram entregues mapas desenhados durante a viagem, com a rota completa da estrada.

Meses depois, eles chegaram a São Paulo, onde os carros foram doados ao Museu do Ipiranga para que fosse exibidos como troféus. Mas, infelizmente, isso não aconteceu. Inicialmente, os dois veículos ficaram embaixo das asas do hidroavião Jahu, a primeira aeronave a cruzar o Atlântico Sul sem escalas, em 1927.

O avião, que também não foi bem cuidado, acabou armazenado junto aos veículos em um barracão de zinco nos fundos do museu. O acervo do Miau (Museu da Imprensa Automotiva) guarda um exemplar da revista Vida na GM de 1954, cuja reportagem visitou naquele ano os carros no Museu do Ipiranga e, 16 anos depois, os carros já estavam em um estado lamentável: com os pneus furados, faróis sem vidro, chassis estragados e assentos destruídos pelas traças.

A partir daí, muita informação se perdeu. Um dos carros foi repassado pelo Museu do Ipiranga ao Museu da CMTC, atual Museu do Transporte Público Gaetano Ferolla (que está fechado), também na capital. O outro carro, o São Paulo, se perdeu.

E é isso mesmo: se perdeu. A teoria mais aceita é a de que foi o carro foi deixado por 30 anos ou mais em um terreno no bairro do Ipiranga e ele se desmanchou ou foi levado por alguém. O veículo doado ao Museu do Transporte Público foi “resgatado”.

Moradores de Bariri, cidade do interior de São Paulo, distante 300 quilômetros da capital, se uniram para montar um museu em homenagem a Mário Fava, o mecânico da expedição. O museu foi inaugurado em 2018 e conta com esse veículo preservado.

Esse homem, inclusive participou da “Marcha para o Oeste”, abrindo estradas e fundando cidades no interior de Goiás, inclusive Brasília, e no Norte do Paraná. Instalou-se em Paranavaí, onde faleceu em 2000, com 92 anos.

Há uma obra, escrita por Osni Ferrari, chamada “Eu Não Sabia que Era Tão Longe”, comentário que Mário Fava, falecido em 1999, sempre fazia quando lhe perguntavam como foi que ele topou participar desse desafio.

Referências:

https://quatrorodas.abril.com.br/noticias/a-triste-historia-dos-ford-t-que-viajaram-do-brasil-aos-eua-90-anos-atras/

https://media.ford.com/content/fordmedia/fsa/br/pt/news/2020/12/22/a-incrivel-expedicao-brasileira-pelas-americas-com-dois-ford-mod.html