Uma das maiores crises sanitárias da cidade de São Paulo quase não foi noticiada por conta do desejo de militares. Estamos falando da epidemia de meningite que atingiu a cidade nos anos 70.
Segundo o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) a doença atingiu todos os bairros e chegou a registrar uma média de 1,15 óbitos por dia.
A epidemia progrediu, em ondas, da periferia para o centro da cidade. É importante fazer um parênteses aqui: nos anos 70, com o crescimento desordenado da cidade, São Paulo registrou um aumento de favelas. Se em 1957 eram 141 favelas registradas, em 1973 já eram 525.
Com o avanço dessas ocupações, a ausência do poder público e a falta de informação, a epidemia progrediu. Nos anos 70, a Zona Sul era a região com a maior concentração de população que morava em favelas da cidade. Em maio de 1971, começando por Santo Amaro, a meningite começou a se espalhar pelos bairros próximos.
Em novembro de 1971, São Miguel Paulista foi o epicentro da explosão de casos na Zona Leste. Em junho de 1972, na Zona Norte, começando por Santana e Tucuruvi, os casos começaram a se espalhar e, na Zona Oeste, em 1973, a Lapa registrou seus primeiros casos, mais ou menos na mesma época do Centro da cidade. Em 1974, não havia nenhuma área da cidade sem registros de casos.
Ainda segundo o Cremesp, a incidência, durante o período de 1970 a 1977 variou entre 13,04 casos por 100 mil habitantes no distrito da Aclimação (centro) a 101,28 na Vila Nova Cachoeirinha (zona norte).
Embora as autoridades sanitárias e políticas negassem a existência da epidemia, importante lembrar que vivíamos no auge da ditadura militar, os médicos da Secretaria Estadual de Saúde (SES) tentavam controlar a doença.
Importante aqui um registro: Carlos Fidélis, historiador e pesquisador do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), destaca que: “Como os dados estavam sob censura, a população e nem mesmo o corpo médico sabia sobre os primeiros surtos, o que facilitou o avanço e a contaminação pela doença meningocócica dos sorotipos C e, posteriormente, A. O Brasil já havia passado por duas epidemias de meningite em 1923 e em 1945, mas nada parecido com o que aconteceu na década de 70. Pela falta de informações, não sabemos como a epidemia começou exatamente, pode ter vindo do exterior”
“A censura permitiu que os casos aumentassem em proporção geométrica, sem controle. Nos bairros mais pobres, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento. Até que, em 1974, não dava mais para esconder o problema. A doença passou a infectar a população de regiões mais nobres de São Paulo. O Hospital Emílio Ribas, referência nesse tipo de atendimento, tinha, na época, 400 leitos e internou cerca de 1200 pacientes com doença meningocócica. As pessoas evitavam até passar na frente do hospital”, conclui.
Voltando à história, duas frentes foram montadas pelo poder público: avaliando a quimioprofilaxia e estudando a eficácia de novas vacinas. Importante dizer que a meningite era um problema para os militares norte-americanos no Vietnã e, parte deles, era vacinada contra o meningococo C. Ou seja, existia, desde 1971, uma possível vacina contra a doença.
Esse imunizante chegou à cidade em 1972, quando foi testada entre crianças de seis meses e seis anos. Os resultados mostraram que a vacina produziria respostas imunológicas apenas e crianças a partir de dois anos.
O problema foi que, como toda pandemia, nesse momento a doença começou a afetar outra faixa etária: chegou aos mais velhos, embora as crianças menores de cinco anos ainda fossem o maior grupo afetado.
Em 1974, a distribuição etária se alterou mais uma vez, com aumento de incidência entre as faixas etárias de 15 a 29 anos. Essa tendência acentuou-se ainda mais e as taxas atingiram níveis escandalosamente altos: 563 casos por 100 mil habitantes em menores de um ano e 51 casos em pessoas com 50 anos ou mais.
Esses números altíssimos foram resultados da sobreposição das duas ondas epidêmicas. A distribuição etária da letalidade também sofreu alterações, mas os maiores números ainda se mantiveram entre os menores de um ano. O problema foi que a meningite começava a afetar o grupo de crianças entre 10 e 14 anos e as pessoas acima de 19 anos.
Apesar da situação, a letalidade, que de 1970 a 1972 variou entre 12% e 14% dos casos, a partir de 1973 declinou, chegando ao valor mais baixo (7%) em 1974.
O maior número de óbitos, entretanto, foi observado em 1975, quando foram registrados 411, média de 1,15 ao dia.
A troca de presidente, com a entrada do general Ernesto Geisel, em 1974, mudou um pouco a condução do problema. Em julho de 1974 foi criada a Comissão Nacional de Controle da Meningite, encarregada de “dar uma cara” à pandemia: mapear os casos e entender quem eram os brasileiros doentes.
As escolas de São Paulo abrigaram hospitais de campanha e os Jogos Pan-Americanos, que seriam realizados na cidade em 75, foram transferidos para o México.
O número de casos registrados em janeiro de 1975 foi seis vezes maior do que o mesmo mês de 1974.
Em março de 1975, finalmente, depois de anos de negacionismo, foi elaborado um plano de enfrentamento e de operações. O resultado foi impressionante: 10 milhões de pessoas vacinadas em quatro dias.
Para que isso fosse possível uma operação enorme foi montada. A parte operacional ficou a cargo do exército. O problema foi que o governo não forneceu comprovantes de vacinação e, para realizar um inquérito imunológico, o IBGE fez um cálculo por amostragem domiciliar.
A cobertura foi estimada em 93% na cidade. Após a campanha os casos diminuíram, mas só retornaram a valores endêmicos dois anos depois. Até julho de 1977 ainda eram registradas incidências acima do esperado.
A partir desse ano, os casos provocados pelo sorogrupo A deixaram de ser identificados; enquanto os produzidos pelo sorogrupo C retornaram ao nível endêmico. São Paulo retornou à rotina.
Referências:
