A presença do crack no Centro de São Paulo é uma das maiores manchas da cidade. Considerado por muitos especialistas como um problema de saúde pública, a Cracolândia, espaço ao ar livre onde dezenas de pessoas que consomem a droga, gera desvalorização de imóvel, problemas de saúde e segurança pública, além de medo e revolta na população.
Apesar da Cracolândia ser notícia todos os dias nos mais variados jornais de qualquer emissora, como esse problema começou? De onde veio essa droga? Só o Brasil tem problemas assim? A solução é trancar todo mundo em uma prisão? Ou o problema é médico?
A história da epidemia de crack em São Paulo está atrelada ao crescimento da cidade. As ondas migratórias do século XX, as grandes obras, o auge da economia cafeeira e o descaso do poder público com o Centro e a periferia compõem a “tempestade perfeita” para o espalhamento da droga.
Vamos nos atentar aos anos 30 e 60. Foi um período turbulento na cidade (e no estado): vínhamos da revolução de 24, que foi o embrião da Revolução de 1932; era o fim do sucesso econômico do ciclo do café, que mudou o Centro de São Paulo, no que buscávamos inspirações europeias para edifícios e espaços de convívio social e a cidade passou a receber uma grande onda migratória, já que a crise se alastrou por todo o Brasil.
Os problemas sociais de São Paulo passaram a receber olhares mais atentos durante os anos 30. Após a Revolução de 1932, a elite intelectual da cidade percebeu que não havia nenhum polo de conhecimento capaz de dizer quais eram as necessidades da metrópole: como era a população? quantas unidades habitacionais faltavam? onde não tinha ligação de esgoto?
Diante disso, em 1933, foram fundadas a Escola Livre de Sociologia e Política e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Em 1934, foi fundada a Universidade de São Paulo (USP), criada para produzir conteúdo e ideias para o Brasil, mas também para mapear os problemas de sua cidade mãe.
O Prefeito da época, Fábio da Silva Prado, usou muitos dos estudos e pesquisas da USP para considerar os problemas sociais da época em sua administração, mas seus esforço se mostraram aquém do necessário.
Diante de todas essas questões e com mudanças drásticas que São Paulo passou, o Centro ficou intocado durante algum tempo. Foi a região que mais recebeu investimentos e melhoramentos, afinal, era a casa de ricos empresários, muitos deles cafeicultores o que, por consequência, gerou a demanda por comércios finos. A região era a referência de compra e bem estar social. Quando escrevo “Centro”, me refiro às regiões como: Higienópolis, Campos Elíseos e a Avenida Paulista.
Ao mesmo tempo em que essa região passou incólume ao começo da crise, os primeiros cortiços começam a surgir próximo das várzeas dos rios, como é o caso do Bixiga, Cambuci e do Brás. Algumas regiões do Centro, portanto, passaram a contar com comércios mais simples e, até mesmo, com uma zona de baixo meretrício.
Até o fim dos anos 60, começo dos anos 70, as condições do Centro se mantiveram estáveis. Nesse período ainda existiam grandes moradias, comércios tradicionais e finos, mas duas coisas mudaram essa história: a recessão do “milagre econômico” e a chegada do Metrô.
O primeiro ponto, fraudado por governos militares, refletiu diretamente na incapacidade de absorção de mão de obra. O resultado disso foi o de milhares de desempregados que começaram a construir cortiços e as favelas passaram a fazer parte da paisagem urbana.
Contudo, nos anos 70, com a chegada do Metrô, a pouca infraestrutura residencial que havia no Centro foi extinta. Com a grande movimentação no local, os comércios de todo tipo tomaram conta do espaço e, além disso, a colorida e ineficiente Rodoviária da Luz, que recebia 2.000 ônibus por dia, contribuía com mais e mais pessoas circulando pela região.
Começaram a surgir hotéis baratos, cortiços, pensões, mais zonas de baixo meretrício, botequins e um pequeno comércio para atender esse movimento. Era a demanda e a oferta. Havia público precisando de acomodações, diversão e insumos. E o mas importante: a estrutura do Centro era muito melhor do que a dos bairros periféricos que, muitas vezes, nem esgoto tinha.
Assim, a grande massa de andarilhos, pessoas que viviam em situação de rua, crianças e adolescentes abandonados, começaram a buscar o Centro para tentar oportunidades de bicos e, até mesmo, de contravenções. Começavam os problemas do poder público com a população que precisava de assistência, cuidado e oportunidades.
A cola de sapateiro, a “boca do lixo” e o cenário perfeito para o crack
A mudança de perfil do Centro, bem como o “fechar de olhos” do poder público para as necessidades de São Paulo resultou em um problema que envergonhou todo cidadão que morou na cidade nos anos 70: o abandono de crianças e adolescentes que, pejorativamente, ficaram conhecidos como “meninos de rua”.
Não era incomum que esses excluídos da sociedade inalassem cola de sapateiro e dormissem pelas ruas. Eram o símbolo do desamparo em meio a um país que buscava a redemocratização, depois dos anos de chumbo e censura. O consumo desse produto afeta diretamente o cérebro, fazendo com que a adrenalina seja liberada e a pessoa fique eufórica, com grande excitação e com efeitos colaterais como náuseas, tosse e salivação.
Com o passar do tempo e o uso constante, o resultado final será uma depressão profunda, com danos cerebrais, convulsões e a “queima” de neurônios. Outro efeito colateral do uso dessa substância é a sensação de saciedade, o que “matava” a fome do usuário.
Em meio a todos esses problemas que afetaram São Paulo, com destaque para dezenas de fotos de crianças usando drogas (que circularam o mundo), chegamos aos anos 90. Foi nessa década que o crime organizado se organizou, muito por conta do caos social em que a cidade estava imersa. Um dos maiores exemplos da falência do estado foi o famoso Massacre do Carandiru, onde 111 presos foram mortos após a invasão da tropa de choque da Polícia Militar.
Ao mesmo tempo em que o caos tomava conta da cidade, as organizações criminosas entenderam que era um momento oportuno de profissionalizar o tráfico de drogas, com destaque para o crack. Assim, o entorpecente passou a chegar de maneira muito organizada às ruas, o que aumentou seu consumo e exponenciou os efeitos colaterais.
A título de curiosidade: um dos livros que consultamos dá conta de que os primeiros registros do crack em São Paulo dão conta de que a droga chegou à cidade em 1989, nos bairros de São Mateus e Cidade Tiradentes. Nos anos 90, com a já citada profissionalização do tráfico, ele foi inserido na Luz, onde passou a ser consumido em larguíssima escala, em especial, na região conhecida como boca do lixo.
Importante mencionar que cidades como NY, Los Angeles, Detroit e cidades europeias, como Zurique, Viena, Munique e Lisboa também tiveram problemas com essa droga, em especial, em bairros periféricos que não tinham atenção do poder público. O processo de chegada da droga foi parecido com o processo de chegada do crack em São Paulo.
A solução adotada nesses países, para tentar resolver (ou amenizar o problema) foi a de cooperar assistência social e medidas policiais. Entendamos assistência social como: redução de danos, construção de moradias, oferecimento de empregos e tratamentos “quase compulsórios”. Em linhas gerais: um programa sólido de retirada do cidadão da situação de extrema vulnerabilidade e de recolocação na sociedade.
A Boca do Lixo e a Cracolândia
A Boca do Lixo é composta por algumas regiões, como Luz, Bom Retiro e Campos Elíseos, pontos que sempre estiveram relacionados à algum tipo de ilicitude.
Desde a virada do século XIX para o XX, não era incomum que fazendeiros e outros integrantes da elite financeira fosse á região que, por sua vez, também era o destino dos trabalhadores mais simples. Esse deslocamento tinha alguns destinos, como a ida ao Cine Bijou Theatre, primeira sala de cinema de São Paulo e o mais procurado: a zona do baixo meretrício do Bom Retiro.
Aliado à isso, a popularização dos cinemas de rua no Centro dos anos 30, aumentou ainda mais a circulação de pessoas por ali. O desenvolvimento dessa tecnologia fez com que os fornecedores de peças, insumos e mão de obra, ficassem pela região da Santa Ifigênia que, aos poucos, se tornou uma referência em comércio eletrônico.
Nos anos 60 e 80, com tantos cinemas na região, o local se tornou o Centro do Cinema Nacional independente e, também, da pornochanchada, segmento que fez muito sucesso entre a população na época. Com todos esses fatores, históricos e desenvolvimento, a região respondia por 40% da produção cinematográfica nacional e atraía fãs, produtores, patrocinadores e dezenas de artistas.
Mesmo com toda essa indústria (e dinheiro) por trás, isso não impediu que a região central se degradasse, com o aumento de comércio ambulante e da criminalidade. Aos poucos o apelido Boca do Lixo foi pegando e se espalhando por São Paulo.
O aumento da criminalidade, da boêmia e de outro fatores fez com que as pessoas se afastassem da possibilidade de morar na região, o que foi gerando um abandono das estruturas. Já nos anos 70, os cinemas de rua perderam força e a região foi tomada pelo baixo meretrício e a ascensão dos cinemas pornôs.
Como já citamos, o crack já era o responsável por problemas na Zona Leste de São Paulo nos anos 90. Não era incomum o roubo para sustentar o vício e grupos de extermínio atuavam para “acabar com o problema”. A Boca do Lixo, local longe da produção da droga e de fácil escoamento, serviu de base para o comércio do entorpecente.
Há uma estimativa de que o crack tenha chegado ao Centro em 1995 e, a partir daí, as cenas de degeneração, problemas sociais e vídeos de agressões de usuários, policiais e cidadãos, não param de aparecer nos noticiários de todas as emissoras.
Mais do que isso, as pessoas que ainda insistem em viver na região vivem em um regime de medo e perigo constantes, não sabendo que horas podem sair e que horas podem voltar para suas casas.
Ao mesmo tempo, o poder público insiste com medidas violentas e de baixa eficiência, como prender e agredir usuários, sem tocar no cerne da questão: o tráfico e a tentativa de recuperação de quem está por lá. O resultado é a cidade conviver com esse problema há mais de 30 anos.
Referência: Livro: Cratod 15 anos – Uma proposta de cuidado ao dependente químico;
São Paulo 1975 – Crescimento e Pobreza (autores diversos);