Minha SP #01 – Por Jorge Tarquini – A Estranha Vida no Desconhecido Círculo do Inferno de Dante

A estranha vida no desconhecido círculo do inferno de Dante

Por Jorge Tarquini*

É tão fácil gostar do belo. Eu mesmo não escapo ao rosto perfeito, à paisagem de tirar o fôlego ou ao prato bem decorado. Imediatamente despertam desejo, encantamento e apetite.

Duro é gostar do contrário. Pior: duro é gostar do invisível. Sim, daquilo que, de tão insignificante, nem se nota. Como a menina sem graça que vaga sozinha pelo recreio da escola. Simplesmente ninguém a vê –  mas é perfeita para sofrer bullying. São Paulo é uma garota assim. E é tão fácil desgostar dela. Tão fácil se aproveitar dela. Tão fácil zombar dela.

Seus cabelos são escorridos, embaraçados em vias expressas, avenidas, ruas e ruelas. Seus olhos, cinza monóxido. Seu cheiro acre vem dos rios mortos, soterrados e em decomposição – ao lado dos quais os carros passam sem notar o defunto. Seu corpo é imperfeito: esparramado, disforme, cheio de subidas e descidas, repleto de buracos e valas.

Como a Geni, da música de Chico, não falta quem a critique por ser como é – e, por isso, nada vê de errado em atirar nela todo tipo de detrito.

Suas ruas, por mais modernas que sejam, vivem atoladas em lixo. Nas calçadas dos melhores bairros, cocô de cachorro dá mais do que capim. A culpa, claro, é dela. Se fosse mais sedutora…

Como a Geni, acolhe em seus braços quem vier, mas é tomada por vagabunda e indecente, por se deitar com qualquer um. Como em um trottoir errante, essa rapariga barata de beira de calçada deixa-se percorrer por olhos, mãos e rodas – e pisoteada por passos ávidos. Deixa-se consumir. Deixa-se violentar. Tudo de supetão. Tudo de imediato. Sexo de ocasião.

Impossível amar alguém assim…

Na falta de algo melhor, 11 milhões de resignados anônimos cumprem sua pena de prisão perpétua algemados a essa figura desalmada, feia e desdentada. Triste destino. Quem anda por ela errante certamente não tem tempo para entendê-la. Nem para escutar o que ela diz. Estão muito ocupados cotidianamente arrastando correntes, apenas percorrendo sem descanso um desconhecido círculo do inferno de Dante personificado pela menina feia e maltrapilha.

Menina cheia de segredos…

Vamos nos encher de pena por esses miseráveis que entregam à malvada tudo o que possuem, suas tristes existências, sem nada ter em troca. Egoísta, essa menina.

Ela guarda para si o segredo de ser a 8ª cidade do mundo em número de bibliotecas públicas (116), segundo estudo da prefeitura da civilizada Londres em 2012. Mais do que a civilizada Berlim, que tem apenas 88. E olha que não entram nessa conta as 45 bibliotecas instaladas nos Centros de Educação Unificada (CEUs) e nem as 70 da Universidade de São Paulo, a USP. Nem foram catalogadas dezenas de outras, por serem particulares ou de instituições privadas de ensino, de entidades como Sesc e Senac…

Lá no perfeito mundo germânico, porém, veja que contradição: cada habitante pega 6,8 livros por ano – enquanto os prisioneiros da desalmada não passam de 0,7 livro por ano. Acho que nossa menina tímida precisa fazer mais propaganda de si mesma…

Essa garota desengonçada ainda esconde somente para si 869 livrarias e 90 sebos – contra 777 livrarias de Nova York e 68 sebos de Londres – duas cidades  para onde, sempre que libertos, os cinzentos prisioneiros gostam de rumar, para respirar civilidade.

Esse mesmo estudo ainda mostra que a menina, que não oferece nada de bom a quem nela paga seus pecados, tem 110 museus. Shangai, o portento da emergente e poderosa China, tem 87. E Sidney, no único país desenvolvido ao Sul do Equador, 59. Ao menos numa coisa esses lugares quase empatam: em visitas per capta, respectivamente com 0,3, 0,5 e 0,6 visitas por ano por habitante.

No quesito teatros, são 116 – além de 7 reconhecidas salas de concerto. Batemos os chineses, os alemães, os australianos (sim, aqueles que têm a Sidney Opera House, lembra?). Para quem acha que estou pagando de cafetão dessa prostituta barata, aqui mando o link do estudo: http://goo.gl/z2zCih

Não é que a esquisitinha tem lá seus encantos?

Para quem puder dar um tempo no círculo do inferno do trânsito, da correria, do celular e puder apenas levantar os olhos e olhar para ela, a menina pode surpreender.

Seja pelo casarão insuspeito e bem conservado que conta sua história, seja pela flor que teima em sobreviver no canteiro central onde alguém ousa fazer sua caminhada matinal, seja pelo bendito sabiá que canta às 2 da manhã em busca de uma parceira furtiva, seja pelo prazer do café da manhã na padoca, seja por se deixar enganar pelo falso brilhante das vitrines dos shopping centers, seja pela simples prazer de se olhar no reflexo do vidro do banco.

Aqui há lugar para os cafonas, para os metidos a intelectual, para os falsos pobres e para os falsos ricos, para a mina tingida e para o mano bombado, para o nerd esquisito e para o somente esquisito.

Essa menina tem um jeito de entender os rejeitados – por ela mesma ser um deles. Na falta de grana, tem a balada dos postos de gasolina, onde, pelo preço de uma latinha de cerveja, sua noite ganha companhia rotativa, de gente que vai para a balada, que está voltando da balada ou, como você, já está na balada.

Na falta de paisagem, tem a muralha de concreto. Na falta de horizonte, tem o anonimato que permite recomeçar. Na falta de amor, tem sempre alguém em busca dele em cada bar, em cada esquina, em cada canto escuro. Na falta de um lugar mais belo, tem ela… São Paulo. Imperfeita. Cruel. Assustadora. Infernal. Sua. Minha. Nossa. Para o bem ou para o mal.

Amém!

*Jorge Tarquini é ator, roteirista, jornalista, escritor e professor da Universidade Metodista de São Paulo. Para conhecer o seu mais novo projeto, Vinte Mil Pedras No Caminho, confere a resenha aqui: http://goo.gl/SgMRNE e para comprar o livro, acessa aqui: http://www.saraiva.com.br/vinte-mil-pedras-no-caminho-a-historia-de-um-piloto-de-aviao-que-se-tornou-morador-da-cracolandia-9151775.html