Nostalgia de pedra
Por Sacolinha*
Entre todos os livros que escrevi, um deles me deu muita alegria e, por alguns meses, alívio também. Trata-se de “Peripécias de minha infância” romance infanto-juvenil que ficou anos perambulando em minha cabeça até que eu tivesse tempo e preparo para colocá-lo no papel.
Em síntese, a história é a seguinte: conta a infância e adolescência do personagem Artur, de família financeiramente pobre, mas criativo e viciado em felicidade.
Poderia ser qualquer história, se passar em qualquer lugar e em qualquer contexto, mas com certeza não teria o efeito que teve, para mim, para os personagens que ali estão e para os leitores mais atentos.
O cenário da obra não foi inventado, ele existe. O romance se passa na Cidade Líder, em Itaquera, Zona Leste de São Paulo, entre as décadas de 80 e 90. E este que escreve esta crônica é o protagonista da história, até certo ponto.
Digo até certo ponto porque o livro aqui tratado é uma ficção. Peguei uma situação real e fabulei um início, meio e fim.
E por que falei do alívio de apenas alguns meses?
Foi porque eu pensava que depois de escrito, publicado e de muitos terem lido, as peripécias, brincadeiras e os mistérios criariam asas e não mais pertenceriam a mim, não mais ficariam como nostalgia em meu peito de 27 anos (na época da publicação em 2010).
Pois é. Hoje, morando em Suzano, município da grande São Paulo, não consigo me desvencilhar dessa saudade ruim, mesmo o tempo trazendo as mudanças e o homem fazendo suas intervenções na natureza. É que existia um local em Itaquera proibido para não funcionários, que na época de minha infância era a maior diversão da molecada e o terror de nossas mães, tias e avós.
Era a Pedreira: uma enorme área que ia de Itaquera a Arthur Alvim e que, por conta da exploração de minério, acabou se transformando num vale, sem beleza nenhuma, e que nem de longe lembrava o Vale Sagrado dos Incas, em Cusco, Peru. Parecia um terreno com uma cratera produzida por um meteoro de grandes proporções. Mas a realidade é que essa cratera foi criada por explosões provocadas por dinamites e acionadas pelas mãos do ser humano.
Pra nós, crianças de 8, 9 e 10 anos, aquele lugar tinha uma beleza misteriosa, e olha que a gente nem tinha noção de beleza.
Ali era perigosíssimo. Ocorreram muitas mortes por queda. Só que a turma de moleques que eu fazia parte não ficava na beira do precipício.
Empinávamos pipas, jogávamos bolinha de gude e futebol, pegávamos argila para trabalhos escolares, fazíamos experiências com as sanguessugas, entre outras traquinagens.
Muitas vezes éramos expulsos pelos seguranças, que não queriam a gente por lá para não atrapalhar o cochilo escondido nas moitas, ou então para não pegá-los em flagrante ato sexual, como acontecia várias vezes.
Falando nisso, levamos muitas das nossas namoradinhas para lá, é claro que, totalmente inocentes, só ficávamos abraçados, olhando o pôr do sol e fazendo planos para o futuro. Só de lembrar já fico de sorriso largo no rosto.
Em alguns momentos sentávamos nas rochas e ficávamos brincando de carrinho. Nossos carros eram os caminhões da empresa que lá embaixo trabalhavam exaustivamente.
E nós cá em cima, manobrando esses veículos como se tivessem em nossas mãos, de tão pequenos que eram, vistos de cima. Os motoristas, cansados, sujos e cheios de contas à pagar, nem imaginavam que suas manobras eram seguidas por mãos pequenas, sem calos e sem compromissos que não o de ir à escola no período matinal.
Ao cair da noite, quando era tempo frio, sempre fazíamos fogueira por lá e aproveitávamos o fogo para queimar os fios de eletricidade que achávamos.
Depois batíamos esses fios queimados no chão, a borracha soltava e ficava somente o cobre que vendíamos para o ferro velho e comprávamos tubaína para beber na Pedreira no dia seguinte.
Meus primeiros contatos com as religiões de matrizes africanas foram ali. Sempre aparecia algum pai ou mãe de santo para fazer alguma oferenda aos orixás. E conversando com essas autoridades acabei entendendo um pouco e me despi de todos os preconceitos que a sociedade me impunha.
Hoje este local está sempre na mídia, porque um pedaço dele pertence ao Esporte Clube Corinthians e é onde está sendo construído o Itaquerão. E também porque a extração mineral foi proibida, devido ao crescimento imobiliário ao seu redor, e agora, feito o enchimento da cava com materiais inertes, planeja-se a implantação de um novo bairro na Pedreira, em cima do aterro. Vejam só!
O bairro Cidade Líder, que foi onde eu nasci e morei por 16 anos, é o bairro mais próximo da Pedreira.
Cidade Líder com seus mistérios e a Pedreira são os lugares que mais me fazem falta. Não daquilo que é hoje, mas do que foi há alguns anos atrás.
Fiz um poema baseado no conto “Viagem aos seios de Duília” de Aníbal Machado, que cria um personagem aposentado, solteiro e solitário que decide ir viajar para a cidadezinha onde nasceu à procura do seu primeiro e único amor de infância.
Ainda com a imagem da garota aos quinze anos, acaba encarando a realidade nua e crua do passar dos anos, da velhice e dos tempos que já não mais existem.
Esse poema demonstra a minha dor:
Aos seios de minha Duília
Viajei cheio de alegria
Ao lugar da minha infância
Mas vejam vocês
Qual foi a minha surpresa
Quando lá cheguei e procurei
Com os olhos curiosos
Os segredos da minha felicidade
Que angústia meu Deus!
O Matagal virou uma ruma de casas,
O Ladeirão, agora é a ladeira de minha memória
O lugar da bomboniere é agora um sobrado
Dividido em dezenas de salas comerciais
E a padaria do seu Doca?
Dos inesquecíveis pudins da tarde
Virou simplesmente
Uma vendedora de pães e cachaça
Meus pés de goiaba, amora e ameixa
Foram decepados
E suas raízes
Foram chumbadas
Com pedra, areia, cimento e água
A minha Cidade Líder
Não é mais líder
Os seios de minha Duília murcharam
Duília agora, só dentro de mim.
Mas ainda assim, minha angústia e decepção guardam esperanças, diferente do personagem de Aníbal Machado. Só que é uma esperança que ainda não entendi.
Será que os dias de hoje são tão duros para mim, ou é a criança da Pedreira que ainda pulsa aqui dentro?
Sempre que passo na região de Itaquera, de carro ou de trem, fico com o olhar a navegar, vagando noutra época e pensando em como aliviar essa dor de nostalgia.
Não consegui descobrir. Só espero um dia que quando o meu olhar vagar por esta região que seja um olhar comum, de um homem que apenas viveu 16 anos ali e cometeu diversas peripécias. Que não guarde mais saudades, principalmente essa saudade que dói.
Espero que isso se cumpra, e logo!
*Sacolinha (Ademiro Alves de Sousa) tem 29 anos, nasceu na cidade de São Paulo e é formado em Letras pela Universidade de Mogi das Cruzes. É escritor, autor de romances e livros de contos. Completou em dezembro de 2012, dez anos de carreira literária. Em sua trajetória já esteve em programas de televisão como Jô (TV Globo), Provocações, Metrópolis e Manos e Minas (TV Cultura). Trabalhou na secretaria de cultura do município de Suzano por oito anos (2005 à 2012), onde desenvolveu centenas de projetos de incentivo à leitura e de divulgação dos novos escritores, com destaque para o 1º Salão Internacional do Livro de Suzano
Olá Ademiro, sei exatamente a nostalgia que esta sentindo, pois procurando material informativo de extração mineral em sp para realizar trabalho sobre meio ambiente me deparei com sua historia, passei parte de minha infância morando na cohab1 em frente ao campo do Arthur Alvim, onde jogávamos muita bola, empinava pipas, pegava girino no brejinho…e todas essas peripécias que você contou em sua estória, tivemos uma infância muito proveitosa.
mais realmente e muito nostálgico e triste só de lembrar do que já foi um dia e o que se tornou hoje…