O conflito pelo ouro no séc. XVIII: a Guerra dos Emboabas

Um dos conflitos que marcou o estado de São Paulo como o conhecemos hoje foi a Guerra dos Emboabas, que aconteceu entre os anos de 1707 e 1709. Na ocasião, os bandeirantes paulistas, que haviam descoberto ouro na região do atual estado de Minas Gerais no final do século XVII, começaram a se incomodar com a chegada de estrangeiros e outros bandeirantes que buscavam a riqueza no local.

Segundo registros históricos, portugueses e moradores de outras partes do país, como a Bahia e Pernambuco começaram a procurar por minas e jazidas pelo estado.  Esses estrangeiros foram apelidados pelos bandeirantes paulistas como emboabas. A origem desse nome é curiosa e tem duas versões aceitas.

A primeira delas é a de que a expressão, vinda da língua tupi, significa “aves de pernas emplumadas” — diz-se que o apelido era por causa das botas que os forasteiros usavam para se proteger das picadas de cobras, insetos e espinhos nas matas fechadas (os paulistas, por sua vez, andavam descalços). De acordo com outras fontes, porém, o termo emboaba significa “os que invadem ou agridem”.

A luta armada

Como citado acima, os bandeirantes paulistas queriam a exclusividade na região do ouro e, o líder desses homens, Manuel de Borba Gato começou a se estranhar com os emboabas, que queriam assumir o controle das minas.

As batalhas, por assim dizer, começaram em 1707. Em 1708, os emboabas fizeram um ataque frontal ao arraial do Sabará, onde muitos paulistas viviam e se concentravam e proclamaram governador da região o português Manuel Nunes Viana, que se tornou o líder dos emboabas.

A atitude, além de irritar os bandeirantes, ainda foi considerada uma afronta à coroa portuguesa, a grande responsável por escolher os governantes do Brasil. Não contentes com o primeiro ataque, os emboabas atacaram novamente os paulistas, no arraial da Ponta do Morro, atual cidade mineira de Tiradentes.

Nessa altura do conflito, 2/3 das minas já estavam sob o domínio dos emboabas, mas o grande episódio violento ficou por conta do fim da guerra.

Um grupo grande de paulistas foi encurralado pelos emboabas, que prometeram libertar os adversários caso eles se rendessem. No entanto, mesmo depois da rendição, os emboabas não respeitaram o acordo e mataram os paulistas. O acontecimento ficou conhecido como Capão da Traição.

A guerra só foi finalizada quando o governador do Rio de Janeiro viajou ao local e encerrou as hostilidades. Como representante da coroa portuguesa, ele demitiu Nunes Viana, mas manteve a administração e direitos dos emboabas.

Os paulistas se afastaram, indo procurar ouro em áreas que mais tarde formariam Goiás e Mato Grosso. O governo português percebeu a necessidade de organizar a ocupação daquele valioso território e criou a capitania de São Paulo e Minas de Ouro, em 1709. Surgiram também as primeiras vilas na região do conflito, como Vila Rica (em 1711), atual Ouro Preto.

Esse processo de separação seria longo e, em 1720, a região das minas foi desmembrada de São Paulo, recebendo o nome de capitania de Minas Gerais.

Um curioso documento

Transcrevo aqui um excelente registro histórico, datado de 22 de agosto de 1709, e que explica parte do episódio. Os documentos fazem parte do Arquivo Nacional. Segue:

“Carta régia ao governador da capitania do Rio de Janeiro, Antônio de Albuquerque, em que se declara ter conhecimento de que os “paulistas” haviam agido “a força das armas e rigor da guerra” contra as pessoas que haviam chegado às minas para explorar o ouro lá encontrado. Contudo, o rei ordena que todos os envolvidos sejam perdoados, à exceção dos líderes, Manuel Nunes Viana e Bento do Amaral, recomendando-se a moderação dos ânimos.

A cidade do Rio de Janeiro seria ajudada para que não ficasse desprotegida, pois tais riquezas, atraíam o interesse de outras nações europeias, principalmente os franceses que continuamente navegavam pela costa brasileira. O conflito entre os “paulistas” e os grupos chegados posteriormente a estes à região das minas ficaria conhecido por guerra dos emboabas.

Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho [1] Amigo Eu, El Rei [2] vos envio muito saudar. Mandando ver no meu Conselho Ultramarino [3] os avisos que Dom Fernando Martins Mascarenhas [4] me fez pela Secretaria de Estado das alterações em que se achavam os paulistas [5] com a gente que havia concorrido às minas, e o que uns e outros tinham obrado sem respeito as minhas justiças e contra todo o direito e ordens especiais e gerais, usando não só da força das armas, e rigor da guerra, mas também de jurisdição despótica e absoluta, o que havia obrigado ao dito Dom Fernando passar em pessoa às mesmas minas e `ilegível] alterações pelas danosas que desta desunião se podiam recear; por assim se resolver na junta que mandara convocar, para o remédio de tão grande dano, o que poderá ser, tenha conseguido, e se achem hoje só `ilegível] as ditas alterações; porém no caso que assim não seja. Me pareceu ordenar-vos /como por esta faço/ para que `ilegível] minas para o que vos permito concederem um indulto geral para todos os agressores dessa desordem, com declaração que no tal indulto [6] se não compreendam os cabeças principais Manuel Nunes Viana[7], e Bento do Amaral [8] de cujos procedimentos se tem originado tantos insultos com a usurpação da jurisdição geral, privando de seus ofícios aos oficiais providos por mim, e promulgando bandos com pena de morte, incorrendo por este caminho justamente em toda a indignação para se proceder contra eles com o maior rigor do castigo.

E para que possais unir os ânimos que se acham tão discordes uns contra os outros, vos encomendo useis neste negócio de toda a prudência e sagacidade, e quando considerais que esta não pode aproveitar, e se avalieis que é preciso recorrerão ao rigor para temperar estas desuniões e castigar aos que incitaram e podem renovar outras dissensões, vós ajudareis de toda aquela malícia e gente que vos for necessária para que o respeito nos faça mais obedecido não tirando, porém em nenhum caso dessa cidade do Rio de Janeiro toda a que nela há, por não deixardes sem defesa essa praça capital do governo, e que pelas suas riquezas se faz tão apetecida das nações européias, e principalmente no corrente tempo em que os franceses navegam tão continuamente esses mares que espreitaram para a levarem por entre presa, e lhe não será oculto qualquer descuido que neste particular tivermos.

E quando totalmente vejais que dos terços não podeis levar todos os soldados para pôr em sossego esses homens, escrevereis ao governador da Bahia[9] que vos mande a gente que vos for precisa para que incorporada uma com a outra se faça um grosso mais formidável, que para este efeito lhe mando escrever e ordeno que pedindo-lhes algum socorro `ilegível] com efeito sem prejuízo da guarnição dessas praças na sua jurisdição.

E confio na vossa prudência que nesta matéria de que vos encarrego obrareis segundo os acidentes do tempo tendo entendido que sempre será mais seguro o recorrer aos meios brandos e suaves para se emendarem e moderarem estes movimentos entre uns e outros vassalos do que dos rigorosos de que podem resultar algumas perturbações que não tenham ao depois fácil composição, e porque pode acontecer que quase não receber desta ordem não estejais ainda entregue deste governo por se achar ausente Dom Fernando ocupado em compor as referidas alterações das minas e por esta causa não possais dar execução o que vos ordeno em que não convém haja dilação, mando escrever a Dom Fernando a carta que vai com esta em que lhe encarrego que logo, sem demora alguma, ainda esteja ausente, vos entregue o governo por assim convir ao meu serviço e por esta mesma carta lhe hei por levantada a homenagem a qual lhe remetereis prontamente a qualquer parte que estiver e pela Bahia se lhe remete também outra via e estou certo que ele como lhe encomendo vos participará para a notícia do estado em que se acha a alteração das minas e todas as mais que entender que podem ser úteis ao meu serviço.

Escrita em Lisboa a 22 de agosto de 1709

Rei

Para o governador da capitania do Rio de Janeiro

Referências do documento acima

[1] Em meados de 1709 Antônio de Albuquerque é empossado no cargo do governador do Rio de Janeiro, que então era uma grande capitania a englobar o que hoje são os estados do Rio de Janeiro, São Paulo e parte de Minas. Substituindo Fernando de Lencastre em meio ao conflito entre paulistas e emboabas, partiu para Caeté, reduto emboaba, e conseguiu apaziguar os ânimos ao expulsar da região o contrabandista Nunes Viana, que retornou para suas terras além do rio São Francisco, na Bahia. Em 22 de agosto, por ordem do rei, é concedido indulto a todos os implicados na guerra dos Emboabas, exceto a Manuel Nunes Viana e Bento do Amaral Coutinho, responsável pela matança do Capão da Traição, que seriam anistiados posteriormente. A partir da intervenção de Coelho de Carvalho, o paulista Borba Gato seria reconduzido ao posto de superintendente da região das minas, e o conflito perderia ímpeto, até o último episódio armado, em fins de 1709. Em novembro é criada a capitania de São Paulo e Minas do Ouro, separando a região do Rio de Janeiro, permitindo maior controle administrativo da coroa sobre a região. O governador foi enaltecido pelo poeta mineiro e inconfidente Claudio Manuel da Costa, que o transformaria em um “herói civilizador.”

[2]Proclamado rei em 1706, d. João V teve que administrar as conseqüências produzidas na colônia americana pelo envolvimento de Portugal na Guerra de Sucessão Espanhola (1702-1712), marcadamente a perda da colônia do Sacramento e a invasão de corsários franceses no Rio de Janeiro (1710-11). A guerra dos emboabas (1707-09) e dos mascates (1710-11) completaram o quadro de agitação colonial deste período. Entre as medidas políticas mais expressivas de seu governo, encontram-se os tratados de Ultrech (1713 e 1715), selando a paz com a França e a Espanha respectivamente, e o tratado de Madri (1750), o qual desenhou de maneira mais próxima a atual configuração do território brasileiro. Durante seu reinado, merece consideração a figura de Alexandre de Gusmão, brasileiro que intermediou o tratado de Madri.

[3] Instituído em 1604, chamado inicialmente de Conselho das Índias, apenas em 1643 passou a ser conhecido como Conselho Ultramarino. Foi criado na época da União Ibérica para obter um maior controle do ultramar português. Era composto de dois secretários: um para os negócios do Brasil, Guiné, ilhas de São Tomé e Cabo Verde e outro para os negócios da Índia. Era responsável pela administração da Fazenda e de todos os assuntos de ordem financeira destes domínios.

[4] Dom Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre toma posse no governo da Capitania do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais em 1705. Em 1707, em um episódio anterior ao conflito específico relativo a exploração das riquezas da região mineira, d. Fernando envolveu-se em acusações de favorecimentos de cessão de contratos para fornecimento de víveres para Minas. O episódio, embora não diretamente relacionado aos embates entre paulistas e emboabas ao longo de 1709, prenunciava disputas acirradas por quaisquer atividades lucrativas que envolviam as minas.   Embora tenha tentado negociações com Nunes Viana em 1709 em uma inútil viagem a Ouro Preto, regressou ao Rio apenas para ser dispensado do cargo.

[5] Desde o início do século XVII grupos saídos de São Paulo se dedicavam a buscar novas riquezas no interior do Brasil (sertão do centro-sul) e capturar indígenas para escravização. Tiveram papel preponderante na descoberta e início da exploração de pedras e metais preciosos no Brasil. No início do século XVIII, quando da descoberta do ouro na região das Gerais, os grupos de paulistas que ali haviam se instalado anteriormente entraram em rivalidade aberta contra os grupos de recém chegados para explorar o minério, grupos estes formados por portugueses e baianos, em sua maioria, e a quem os paulistas chamavam emboabas.

[6] Suspensão parcial ou total de pena imputada a um condenado. Perdão específico relativo a um ato considerado ilegal.

[7] Em fins do século XVII e início do século XVIII teve lugar no chamado sertão (atual Minas Gerais) uma corrida ao ouro que ocasionou a afluência de fidalgos, aventureiros, comerciantes e indivíduos de origens diversas em busca de enriquecimento. Os primeiros desbravadores, bandeirantes paulistas, não aceitaram facilmente a concorrência em uma terra que a seu ver lhes pertencia por fato e direito. Esta disputa encontra-se nas origens da guerra dos emboabas. Manuel Nunes Viana possuía origens judaicas, o que fazia dele, segundo terminologia da época, marrano `cristão-novo]. Enriqueceu com a exploração do ouro em Minas e comerciando escravos na Bahia, tornando-se um dos maiores contrabandistas da região, que contava com uma ampla rede de criadores de gado, lavradores, comboeiros e negociantes que forneciam mercadoria para a região das minas. Seus grupos andavam armados pelo sertão, dispostos a resistir a ferro e fogo às tentativas de coibir os “descaminhos.” O estopim para a instauração de um conflito armado na região foi a determinação da sua expulsão, por parte do superintendente Borba Gato. Em meio aos combates, acabou aclamado governador da região das Minas por parte dos povos reunidos na região de cachoeira do Campo, em Rio das Mortes. A aclamação desagradou a coroa portuguesa, que a esta altura já se via enredada em uma disputa local levada a cabo por famílias influentes e rivais em torno da exploração do mais precioso produto da colônia: o ouro. A despeito das acusações de traição e das desavenças com o vice-rei, acabou por receber indulto real tardiamente, e foi aceito inclusive na elitista Ordem de Cristo.

[8] Nasceu no Rio de janeiro, de onde partiu foragido, acusado de assassinato. Participou diretamente dos conflitos, inclusive no polêmico, infame e incerto episódio conhecido por Capão da traição, em que grupos de combatentes paulistas foram assassinados a sangue frio após a rendição.

[9] Estabelecida em 1534, teve como primeiro capitão-donatário Francisco Pereira Coutinho, militar português pertencente à pequena nobreza que serviu nas possessões da Índia. Em 1548, fora revertida à Coroa e transformada em capitania real. Um ano mais tarde, com a fundação da cidade de Salvador, abrigou a primeira capital da colônia, posição que ocupou até 1763, quando a sede administrativa colonial foi transferida para a cidade do Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, o rei d. José I extinguiu as capitanias de Ilhéus e de Porto Seguro e incorporou as suas áreas à da Bahia. A ela também se subordinava a capitania do Sergipe d’El Rei (até 1820). Sua geografia, no período colonial, estava dividida em três grandes zonas – o grande porto, que compreendia a cidade de Salvador, a hinterlândia agrícola, referente ao Recôncavo, e o sertão baiano – as quais possuíam atividades econômicas específicas. A cidade de Salvador exerceu as funções de porto transatlântico e de cabotagem para o comércio de fumo, algodão, couro e açúcar (principal produto de exportação), assim como para o tráfico de escravos. No Recôncavo, a agricultura comercial se destacava, concentrando um grande número de engenhos de açúcar; também ali, se encontrava a cultura do fumo e ainda, mais ao sul, uma agricultura de subsistência. No sertão, a principal atividade era a pecuária, tanto com produção de carne, couro e sebo, quanto com o fornecimento de gado que servia de força motriz para os engenhos e para o abastecimento da cidade de Salvador e do Recôncavo. Girando em torno da atividade açucareira, a vida sócio-política baiana era reflexo da “grande lavoura”, na qual a hierarquia era dominada pelos senhores de engenho, existindo, também, uma forte influência da religiosidade no cotidiano da população.

Referências para a escrita do texto: https://escola.britannica.com.br/artigo/Guerra-dos-Emboabas/483227

Livro São Paulo Imperial – João Rossi e Paulo Assunção – Página 31

http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4560:guerra-dos-emboabas&catid=172&Itemid=215