A história da vergonha: a Sociedade Eugênica de São Paulo

Não é um tema fácil o que vamos escrever e contar para vocês no texto de hoje. É uma situação que traz ojeriza, raiva e até inconformismo, que foi o que senti quando descobri o que era esse movimento e quem fez parte dele no Brasil e, em especial, em São Paulo.

O assunto de hoje é a eugenia e sua relação com São Paulo ou, pelo menos, a relação dos nomes que apoiavam essa corrente “científica” e que são homenageados, com nome de ruas e avenidas inclusive, até os dias de hoje. A pergunta que ficará após terminarem de ler o texto é uma só: é possível separar o criador da criatura ou uma pessoa preconceituosa da sua obra? Discutiremos esse tema na sequência.

Para quem leu pela primeira vez o termo “eugenia”, vale uma pequena explicação do que se trata. Essa palavra foi criada por Francis Galton no final do século XIX e, em sua essência, quer dizer “linhagem boa” (“eu” vem do grego e significa bom e “genia” quer dizer linhagem).

Galton era geógrafo e primo de Charles Darwin e, segundo uma boa matéria feita pela revista Super Interessante, ele queria criar uma “sociedade perfeita”.

Uma de suas ideias, por exemplo, era a de que para se acabar com a miséria, os ricos deveriam ter mais filhos do que os pobres, para que com o tempo, as linhagens fossem “melhores” e mais “bem adaptadas” para viver em sociedade.

Assim, Londres não teria mais uma população pobre, doente, alcoólatra, etc. Esse conceito (estúpido, na minha visão) serviu de base para toda uma sorte de racismos e segregações. De maneira básica e bastante simples, esse é o conceito que vamos abordar e vamos dar alguns nomes que eram adeptos dessa “corrente científica”. E não foram poucos os que defendiam esse tipo de pensamento.

No âmbito nacional, temos nomes como Belisário Pena, fundador da Liga Pró-Saneamento do Brasil e Artur Neiva, discípulo de Oswaldo Cruz. Esse último era um defensor do branqueamento da população brasileira. O primeiro nome que é famoso entre os paulistas e moradores da Zona Leste que defendia esse tipo de conceito era ninguém menos que Silvio Romero, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.

A matéria da revista Super Interessante, que está linkada no fim do texto, traz uma parte do discurso de Romero onde ele crê quem pela seleção natural, os negros e índios desapareceriam do Brasil:

“Pela seleção natural, o tipo branco irá tomando preponderância até mostrar-se puro e belo como no Velho Mundo”, escreveu Romero em 1879. “Dois fatos contribuirão largamente para esse resultado: de um lado, a extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos índios, e, de outro, a imigração europeia.”

O exemplo mais gritante da organização eugênica em São Paulo se deu através do médico Renato Ferraz Kehl, por volta de 1917. Ex-funcionário do Departamento nacional de saúde pública, ele foi o grande responsável por organizar uma reunião entre médicos na cidade.

Do encontro proposto por Kehl surgiu a Sociedade Eugênica de São Paulo e, entre os membros desse colegiado estavam: Arnaldo Vieira de Carvalho (fundador da Faculdade de Medicina de São Paulo, que dá nome à Avenida Dr. Arnaldo), Vital Brazil Mineiro da Campanha (fundador do Instituto Butantan), Arthur Neiva (sanitarista e também nome de rua), Franco da Rocha (psiquiatra e nome de cidade), e Monteiro Lobato. Vale a ressalva que o escritor patrocinou as primeiras publicações do movimento: Annaes de Eugenia, lançados em 1919.

Mais do que isso, chegou a enviar cartas a Arthur Neiva com esse tipo de colocação: “País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Kux-Klan [sic], é país perdido para altos destinos. […] um dia se fará justiça ao Ku-Klux-Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva” (LobaTo, carta enviada a Arthur Neiva em 10 de abril de 1928, apud NIGrI, 2011, p. 26)

Galton e Kehl “os pais” da eugenia

Esse movimento, com o passar dos anos ganhou muita força. Em 1926, o deputado Ellis Júnior chegou a propor a votação de um projeto que dificultava a imigração de asiáticos e negros para o Brasil. Um dos parlamentares que apoiou essa ideia foi Oliveira Viana, imortal da Academia Brasileira de Letras.

Entre os mais absurdos acontecimentos da época está o Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado em 1929, no Rio de Janeiro e o “Concurso de Eugenia”, realizado em São Paulo.

Descritivo do concurso de eugenia
Criança vencedora do primeiro concurso de eugenia

Vale dizer que, dentro dos boletins que tratam desse tema, o autor deixa claro que “..mesmo depois da fundação em São Paulo primeira Sociedade Eugênica, primeira Sociedade Eugênia aparecida na América do Sul”. Infelizmente, fomos pioneiros nessa manifestação nefasta.

O resultado de todo esse movimento foi que, em 1934, durante o Estado Novo, o artigo 138 determinava que “estimular a educação eugênica” era dever da União, dos Estados e dos Municípios. Uma vergonha sem limites!

Segundo a grande matéria da Super Interessante, o movimento só foi perder força após os horrores do Holocausto, que influenciaram o mundo inteiro. Entretanto, é importante observar que essas bases criadas por “médicos” e intelectuais acabaram sendo os alicerces para o racismo que persiste até os dias de hoje.

A pergunta feita no começo do texto se mantém: é possível separar as criaturas de suas criações? Os nomes que usamos hoje em vias merecem continuar, mesmo essas pessoas tendo apoiado uma corrente científica tão horrível quanto essa?

Links de referências: https://super.abril.com.br/especiais/racismo-disfarcado-de-ciencia-como-foi-a-eugenia-no-brasil/

http://memoria.bn.br/DocReader/159808/1 (Boletins eugênicos)

https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/eugenia-no-brasil-como-ciencia-foi-usada-para-justificar-o-racismo.phtml

https://www.revistas.uneb.br/index.php/rbpab/article/view/7148/pdf