Nas últimas semanas o podcast “A mulher da casa abandonada”, do jornalista Chico Felitti, autor do premiado texto Fofão da Augusta, tem conquistado semelhante sucesso. A casa que dá nome à série tem atraído curiosos, produtores de conteúdo e equipes jornalísticas, em busca de algum contato com Margarida Bonetti, personagem principal do podcast.
Fugitiva para os Estados Unidos por escravizar, junto com o marido Renê Bonetti, uma brasileira durante 20 anos, Margarida é descendente de uma rica família paulista. Entre seus parentes diretos, está o Barão de Bocaina, seu avô, importante figura da cena empresarial brasileira na virada do século XIX para o XX. Há, porém, outro parente de alta nobreza nessa árvore genealógica.
Trata-se do Conde José Vicente de Azevedo, criador da Funsai (Fundação Nossa Senhora Auxiliadora do Ipiranga), voltada para a educação e apoio de crianças e jovens carentes. Para se ter uma pequena dimensão do que o Conde fez por São Paulo, como escreveu Affonso D’Escragnolle Taunay, “bem poucos brasileiros poderão, em suas biografias, arrolar tão avultada documentação de benemerência quanto a do José Vicente de Azevedo”.
Nascido em 7 de julho de 1859, na cidade de Lorena, interior do estado de São Paulo, José Vicente de Azevedo ficou conhecido por quatro características: a religiosidade, o espírito público, a docência e o amor com a infância desvalida.
Vicente de Azevedo era o terceiro de sua família com o mesmo nome. Seu avô, comendador José Vicente de Azevedo, era português, natural da cidade do Porto. Nascido em 16 de julho de 1799, ao completar 24 anos foi escolhido para a Guarda de Honra do Imperador, onde serviu com destaque e conquistou promoções.
A título de curiosidade histórica, ele era íntimo de Dom Pedro e fez parte da guarda de honra que escoltou o imperador a São Paulo em 1822. O resultado desta viagem seria a Proclamação da Independência do Brasil em 7 de setembro daquele ano.
O primeiro dos “José Vicente de Azevedo” ainda foi o responsável por decidir investir em Lorena, a cidade então conhecida como a “Princesa do (Vale do) Paraíba”. Foi lá o berço da fortuna da família. E ali nasceram José Vicente de Azevedo (segundo de seu nome e pai do Conde) e Pedro Vicente. Pedro chegou a governar quatro províncias: Pará, Minas Gerais, Pernambuco e São Paulo.
Voltando aos “Vicente de Azevedo”, o pai do nosso personagem foi uma figura influente no interior. Logo cedo, percebeu vocação para a política, assim como seus ascendentes. O primeiro dos José Vicente de Azevedo, inclusive, foi rival do Coronel Rafael Tobias de Aguiar (patrono da Rota), depois Brigadeiro, em vários momentos, inclusive na chamada Revolução Liberal,
Após grande esforço e estudo, o segundo José Vicente de Azevedo se tornou um rico comerciante, investindo em atacadistas no Rio de Janeiro e sempre olhando com carinho para Lorena, onde os inimigos do seu pai mandaram por décadas. Não cabe dizer se os Vicente de Azevedo eram heróis e esses ditos “inimigos” os grandes vilões da história. Simplesmente a família Vicente de Azevedo ficou afastada da cidade por um bom tempo.
Quando a família voltou à cidade, mais uma tragédia os afeta: em 1869, ele foi assassinado e, dizem, a mando político. Ele deixou 3 filhos e uma filha. Um desses filhos foi o Conde José Vicente de Azevedo. Outro, o Barão de Bocaina, citado no começo do texto.
Vida, obra e realização
O Conde nasceu em 7 de julho de 1859, em Lorena. Como vimos, ficou órfão de pai aos 10 anos, o que mudou sua vida. Desde criança se mostrou muito religioso e devoto à figuras como Nossa Senhora e São José. Era comum que ele repetisse à sua mãe: “Mamãe, quanta falta faz o papai, como é triste a orfandade!”.
A tragédia que atingiu a família, mudaria a história de um sem número de crianças carentes por São Paulo. Dizem que é dessa época, próximo de seus 10 anos, que José Vicente de Azevedo, fez a promessa a si mesmo de que, quando “fosse alguém”, faria algo pelo que era chamado de infância “desvalida”.
Durante muitos anos, Azevedo trabalhou junto com seus empregados até que, em 3 de julho de 1876, ele chegou a São Paulo para morar com o tio e cursar a “Academia”, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde foi contemporâneo de Júlio Mesquita, um dos proprietários do Estadão, histórico veículo de imprensa nacional.
A biografia de Azevedo destaca que ele foi um aluno exemplar, ávido por conhecimento. Era comum encontrar o aspirante a advogado lendo no Jardim da Luz, em frente ao “canudo de João Teodoro”, a torre de Pisa” de São Paulo. Acabaria se formando em dezembro de 1882, aos 23 anos.
No ano seguinte, Azevedo se casaria com Candida Bueno Lopes, fato marcante em sua vida. A cerimônia foi realizada na atual Igreja de São Cristóvão, na Avenida Tiradentes. Outro fato importante que mudaria parte da história de São Paulo se deu na sequência: sua entrada na política.
Entre sua longa obra que pode ser destrinchada no livro, vale destacar alguns pontos de sua atuação como deputado, já no fim da década de 1880: foi o responsável por apresentar o projeto que oficializou a construção do Viaduto do Chá e foi um dos responsáveis por ajudar a levantar fundos, junto à jogos de loteria, para a construção da nova catedral da Sé e, além disso, era um entusiasta de que a versão antiga da Sé fosse mantida de pé e que a nova catedral fosse construída no Largo dos Curros, atual Praça da República.
Após intensa atuação enquanto político e professor, além de várias ideias importantes arquivadas, Azevedo decidiu se dedicar a uma seara em que explorara pouco: a caridade. Segundo trecho de seu livro: “….soube José Vicente de Azevedo associar intimamente civismo e religião, assim como identificar amor à terra, que o viu nascer, com a fé católica, recebida no berço, com o leite que o criou. Transformou a obra de misericórdia – amparar os pequeninos, os pobres, os miseráveis – no próprio serviço à pátria.”.
Esse trecho ajuda a explicar a escolha da sede de sua instituição, afinal, qual melhor lugar de nascimento de uma instituição dessas do que o berço do Brasil? Com essa ideia em mente, comprou diversas glebas de terreno na região, para erguer um internato que ajudasse, primeiramente, moças carentes.
Assim, em 1890 ele começa a construção do “Asilo de Meninas Órfãs”, cellula mater da Fundação Nossa Senhora Auxiliadora do Ipiranga, inaugurado em 22 de novembro de 1896, com capacidade para atender a 150 órfãs. A ele, seguem-se inúmeras obras assistenciais e educacionais, as quais funda, incentiva ou viabiliza, dotando-se de expressivo patrimônio, que lhes assegurará uma longa existência.
Mais uma curiosidade histórica: o prédio do Asilo de Meninas Órfãs foi projetado por Francisco de Paula Ramos de Azevedo que, ao ser convidado para o projeto, aceitou o encargo e já avisou que nada receberia pelos trabalhos. Além disso, indicou Guilherme Krug e seu filho para acompanharem os projetos.
O projeto do asilo, digamos assim, ainda enfrentou um problema urbanístico: a Comissão de Construção do Monumento do Ipiranga, basicamente quem cuidaria da construção do museu, acreditavam que esse prédio poderia causar danos estéticos visual ao conjunto arquitetônico histórico que seria construído. Apesar desses problemas, a missão de Azevedo foi erguida sem percalços.
Surgiram no Ipiranga, entre 1895 e 1938, e permanecem atuantes: Orfanato (depois Instituto) Cristóvão Colombo; Educandário da Sagrada Família; Instituto Padre Chico; Seminário Central do Ipiranga, da Arquidiocese de São Paulo; Colégio São Francisco Xavier; Instituto Maria Imaculada; Clínica Infantil do Ipiranga/ Hospital Dom Antônio de Alvarenga, hoje Associação Beneficente Nossa Senhora de Nazaré (Abensena).
Valem mais duas ponderações aqui: em 1924, quando da Revolução que destruiu parte da cidade, o Conde pessoalmente conversou com os dois lados da guerra para manter em segurança as meninas do Asilo. Após negociar uma “trégua” na região do Ipiranga, conseguiu andar pela cidade, a pé, conduzindo dezenas de órfãs ao Colégio Nossa Senhora do Sion. Um ato quase heróico.
Por fim, o título de “Conde”, veio através da Igreja Católica. O então Arcebispo Dom Duarte Leopoldo e Silva, foi o responsável por levar adiante essa nomeação. A ideia e que fosse outorgado o título de Conde Romano, nomenclatura que não poderia ser recusada, sob pena de grave desobediência à autoridade religiosa. Isso porque, em 1908, havia recusado um título de Marquês, oferecido pelo próprio Papa São Pio X. O título, claro, foi concedido em homenagem à sua obra benemérita.
O Conde faleceu em 3 de março de 1944, com 85 anos incompletos.
Referência: Conde José Vicente de Azevedo – Sua Vida e sua obra; por: Maria Angelina V. de A. Franceschini